Tituba
No terceiro episódio vamos conhecer uma das principais figuras da caça às bruxas de Salém, a escravizada indígena Tituba
Indígena Arawak da América do Sul, Tituba foi sequestrada de sua comunidade ainda menina e levada para Barbados, no Caribe (então uma colônia inglesa), onde ela foi herdada pelo seu amo, o pastor Samuel Paris, quando ele assumiu o controle da fazenda da família. Passado algum tempo, Paris a levou para Boston e para Salém, onde sua confissão de ter assinado o livro do Diabo mudaria o rumo da história da caça às bruxas.

Neste episódio, Natalia Viana mergulha na biografia desta mulher indígena, recorrendo a documentos, livros e análises de historiadores para entender qual foi seu papel nos fatos que ocorreram em 1692 e no imaginário daquele pequeno vilarejo puritano de cerca de 500 habitantes.
Ao pesquisar a história de Massachusetts, a narradora entende que não podemos olhar Tituba de forma isolada, pois os nativos das Américas eram centrais no imaginário ultra-religioso puritano. A Guerra do Rei Felipe, ocorrida entre 1675 e 1678, consolidou uma relação de ódio e terror incorporada às leis coloniais, ao mesmo tempo em que os ingleses operavam um genocídio contra as populações locais. Neste contexto, a mudança de narrativa operada por Tituba funciona como um ato de resistência e de rebelião contra a ordem estabelecida.
No terceiro episódio de Caça às Bruxas – uma história de terror real mergulhamos na história de Tituba e em sua surpreendente confissão. Ouça agora.
Leia abaixo o roteiro do episódio na íntegra:
[Natalia Viana]
Então, eu quis vir aqui no pier porque tem uma pessoa que, para mim, é a personagem mais fascinante de toda a história das bruxas de Salém e é a história dela que a gente vai se focar nesse podcast. Só que é uma pessoa que não deixou praticamente nenhuma marca. Você não tem o nome dela nos memoriais. Tem um memorial aqui, né? Não tem o nome dela. Você não tem o nome dela no lugar onde as pessoas foram enforcadas. Você não tem nenhum resquício físico da presença dela.
[Natalia Viana]
Mas ela é a pessoa que a historiografia aponta com razão como a principal responsável por tudo o que aconteceu. E ela é a Tituba. Só se sabe o primeiro nome dela. A Tituba ela nasceu numa comunidade indígena, Arawak. Dizem que o nome da aldeia dela, da comunidade dela, era Tatibitana. Ela foi sequestrada da sua aldeia, da sua comunidade. Como isso acontecia, né?
[Natalia Viana]
Chegavam barcos de piratas ou barcos de mercadores para fazer trocas comerciais e às vezes sequestravam algumas pessoas, principalmente mulheres e crianças. As indígenas Arawak eram muito requisitadas, eram muito queridas para serem escravas domésticas porque elas cozinhavam bem e também costuravam.
[Natalia Viana]
E aí ela foi sequestrada da sua casa, jovem, adolescente, criança provavelmente. E aí foi levada para Barbados, onde ela serviu também como escrava doméstica para a família do Samuel Parris durante cinco anos. Ela chegou lá em 1676, mais ou menos. Tem registro de uma indígena com nome muito semelhante nos documentos da época. Depois de cinco anos deu errado. O Samuel Parris vendeu a fazenda e resolveu virar pastor.
[Natalia Viana]
O que a gente consegue ver daqui, né? A gente consegue ver é um porto. Essa baía já existia. Embora o porto tenha sido aterrado, a baía era igual. Eu imagino que a vegetação deveria ser bastante igual. Não tinha nada, não tinha esse monte de lanchas aqui que a gente está vendo. Estamos vendo um monte de peixe, estamos vendo um monte de turista andando aqui pelo pier. Nem tinha nada disso e era um lugar absolutamente desconhecido para ela.
[Natalia Viana]
Então ele trouxe ela provavelmente num barco. Tem que lembrar, os barcos eram muito menores, os barcos eram a vela. Não havia nem barco a vapor ainda, nem navio a vapor. Não tinha a vida de evolução industrial. Aquela viagem que leva muito tempo de Barbados até aqui, e eu imagino ela chegando nesse porto, imaginando como vai ser a vida dela daqui para frente. Acho que uma das coisas que a gente pode dizer sem dúvida é que a Tituba é uma grande resistente, é uma grande sobrevivente.
[Giulia Afiune]
Realmente ela é muito inteligente, assim, porque ela conseguiu usar esse poder da narrativa, esse poder da história, da contação de histórias, né?
[Natalia Viana]
Eu estou no pier de Salém, que em 1692 era a cidade de Salém. Era aqui que chegavam os barcos que vinham de Boston ou do norte, de Maine, onde se derrubava toda a madeira que supria as cidades da Nova Inglaterra. Estou sentada de pernas cruzadas à beira d ‘água com a jornalista Giulia Afiune e estamos olhando as águas calmas do começo de outono em Massachusetts, que na época se chamava Nova Inglaterra.
[Natalia Viana]
É 31 de outubro de 2023 e viemos aqui para Salém para encontrar rastros das histórias dessas mulheres na maior festa popular dos Estados Unidos, o Halloween, ou o Dia das Bruxas.
[Natalia Viana]
Salém é hoje a cidade que tem o maior e mais famoso Halloween do país. Exatamente aqui, onde 330 anos antes, a indígena Tituba chegou ao Centro Comunitário e diante de dois homens nobres, juízes bem vestidos, confessou ter assinado o Livro do Diabo e ter visto outras nove marcas, de nove bruxas e bruxos que seguiam à solta.
[Natalia Viana]
Eu sou Natalia Viana e esta é a série Caça às Bruxas: uma história de terror real. Episódio 3: Tituba.
[Natalia Viana]
Eu sou fascinada pela figura de Tituba desde que eu li sobre sua existência há mais de cinco anos.
[Natalia Viana]
Quando chegou naquele tribunal improvisado, arrastada por um guarda e com as mãos atadas, sob os olhares de todos os moradores da vila, ela sabia que sua pena, no mínimo, seria muito pior que a das outras acusadas. Mesmo em crimes considerados menos graves, os escravizados recebiam como punição surras, chicotadas, tinham a pele marcada com a letra do crime ou até as orelhas cortadas, enquanto os demais tinham que pagar multas.
[Natalia Viana]
Ela era escravizada, nem pertencia a si mesma, era vista como menos que um ser humano. Podia ainda morrer, sua vida não lhe pertencia. Mas ao falar diante daquela audiência puritana, ela também exercia enorme fascínio e enorme temor.
[Natalia Viana]
Lendo os documentos que relatam seu interrogatório, fica claro que ela dominava a arte da narrativa.
[Natalia Viana]
Segundo o que sobrou dos registros da época, ela continuou sendo questionada nos dias seguintes, e a cada visita, sua história ia aumentando.
[Natalia Viana]
Na visita à prisão, além de ter visto o Livro do Diabo, Tituba relatou aos juízes que um homem alto disse a ela que era Deus em pessoa, mas ela não acreditou. Depois, ele mostrou uma variedade de coisas bonitas para ela, criaturas mágicas como um pássaro verde e branco. Mais animais, mais fantasia, e a lenda das bruxas de Salém ia crescendo.
Natalia Viana]
Tituba era uma mulher que jamais deveria ter entrado para a história. Estava fadada a ser uma das milhões de escravizadas indígenas anônimas no Novo Mundo. Mulheres que não deixaram rastro de sua existência. Mas existem vários livros sobre ela.
[Natalia Viana]
Nos anos 70, houve uma grande disputa sobre o seu legado. Uma novela foi escrita pela feminista Maryse Conde chamado “Eu, Tituba, bruxa de Salém”, que a descrevia como uma escravizada africana, embora sempre se refiram a ela nos documentos originais como abre aspas, “índia”, fecha aspas.
[Natalia Viana]
É por isso que eu gosto de ir atrás dos historiadores. Eles são, como jornalistas, aqueles que tentam entender o que aconteceu, com o pouco de fontes que podem encontrar, e sem uma agenda própria.
[Natalia Viana]
Em seu livro “Tituba, bruxa relutante de Salem”, a historiadora Elaine Breslaw refaz com muito cuidado tudo o que se pode saber da trajetória de Tituba com base no contexto da época. Ela estima que a menina tenha sido sequestrada da família aos 10 anos e tenha chegado a Barbados pouco depois. Na época, Samuel Parris ainda estava estudando para ser pastor em Harvard e Tituba era apenas uma dentre 69 escravizados da propriedade.
[Natalia Viana]
Mas, mesmo na fazenda, a Tituba tinha uma função diferente das escravizadas africanas. Dormia na casa grande, era obrigada a vestir roupas inglesas como avental, anágua e colete, e cobrir a cabeça com touca ou boné, além de usar sapatos, coisa que provavelmente odiava.
[Natalia Viana]
Além de cuidar da casa, o trabalho de uma escravizada indígena era principalmente cozinhar. E, aos poucos, a culinária nativa ia se misturando ao gosto dos senhores. Por exemplo, em Barbados, era comum beberem o caxiri, uma bebida feita a partir do mastigo de raízes que ainda é muito comum entre os indígenas da América do Sul, incluindo o Brasil. Ele substituiu o vinho português. Também foram os indígenas que ensinaram os europeus a fazer pão de mandioca.
[Natalia Viana]
Quando chegou na Nova Inglaterra, a Tituba viveu na casa do recém-casado Samuel Parris em Boston, algo que ela lembraria durante a sua confissão.
[Natalia Viana]
Mas, na Nova Inglaterra, aqueles ingredientes de que eu estava falando hariavam. E a Tituba provavelmente teve que aprender a substituí-los por milhos, nabos, cenouras, ervilhas, feijões e também pela carne de porco e carne de boi salgada. Ou ainda pela carne daqueles enormes animais que até hoje vemos caminhando despreocupadamente pelas ruas da Universidade de Harvard, os perus. Que, não sei se você sabe, são nativos da América do Norte.
[Natalia Viana]
Imagino que era uma vida solitária, pois havia naquela época apenas algumas centenas de indígenas entre os brancos da região.
[Natalia Viana]
Àquela altura, ela já entendia bem a importância dos livros, pois a leitura da Bíblia era sagrada na casa de um pastor. Todas as manhãs ao acordar, liam uma página em voz alta e depois cantavam um salmo. À noite, antes de dormir, o ritual se repetia.
[Natalia Viana]
Nos registros que sobraram dos interrogatórios que aconteceram depois daquela primeira confissão, há um trecho revelador sobre como ela era. Esse diálogo ocorreu na tarde do dia 2 de março de 1692, na fria cela da prisão de Salém. Ela estava contando aos juízes sobre mais uma visita do tal homem alto, vestido de negro.
[John Hathorne]
Onde estava o seu senhor, então?
[Tituba]
No outro quarto.
[John Hathorne]
Que horas eram da noite?
[Tituba]
Um pouco antes da hora das preces.
[John Hathorne]
O que disse esse homem?
[Tituba]
Vai ao outro quarto ver as meninas e machuque elas. Então eu fui. Mas eu não as feri. Eu não iria machucar a Betty. Eu amava a Betty. Mas eles me fizeram beliscar e machucar a Betty e depois a Abigail.
[Natalia Viana]
Tituba criou a Elizabeth, ou Betty Paris, desde neném. E amava a menina. A mesma que acusou ela de bruxaria anos depois.
[Natalia Viana]
Agora eu vou explicar uma coisa importante para você ter em mente enquanto acompanha comigo essa história. Quando Tituba apareceu no Centro Comunitário e confessou seus supostos crimes, ela não era vista apenas como uma empregada doméstica. A figura de Tituba em si inspirava medo. Inspirava terror.
[Natalia Viana]
Isso porque, a algumas dezenas de quilômetros ao norte, os puritanos travavam batalhas sangrentas contra os indígenas nativos da América que resistiam contra o roubo de suas terras.
[Natalia Viana]
Apenas 15 anos antes, muitos daqueles que viviam em Salém viram seus parentes ou conhecidos terem vilas atacadas pelos Pokanoket, uma nação indígena que havia se aliado aos franceses para derrotar os ingleses. Histórias de decapitações, corpos escalpados, vilarejos inteiros incendiados e saqueados povoavam o imaginário dos puritanos.
[Natalia Viana]
O chefe daquela nação, de nome Metacom, se autointitulou King Phillip e travou uma das mais longas guerras no norte da Nova Inglaterra, conhecida como King Phillip’s War, ou a Guerra do Rei Filipe. Segundo historiadores, essa guerra levou a uma perda econômica tão grande que o estado de Maine nunca se recuperou totalmente. Essa guerra ajudou a determinar as fronteiras entre os Estados Unidos ao norte e o sul do Canadá, onde até hoje se fala francês.
[Natalia Viana]
Os indígenas eram inimigos, portanto, e mais do que isso. Eram vistos como demoníacos, aliados das forças do mal que queriam destruir o experimento puritano no Novo Mundo, de uma cidade pura e religiosa, sobre a montanha e livre de todo o mal.
[Natalia Viana]
Segundo escreveu o historiador Almon Wheeler Lauber, no livro Escravidão Indígena nos “Tempos Coloniais dentro dos Atuais Limites dos Estados Unidos”, publicado em 1913, essa percepção levou a, abre aspas, “um ódio e suspeita intensos de todos os indígenas”.
[Natalia Viana]
Do outro lado, claro, os ingleses eram escravizadores, torturavam e matavam os indígenas, além de terem se apropriado das suas terras e destruído seu modo de vida.
[Natalia Viana]
Estima-se que na Guerra do Rei Filipe morreram duas vezes mais indígenas do que ingleses. Aqueles que foram capturados acabaram sendo enviados como escravizados para as colônias no Caribe, onde poderiam ser melhor contidos. Os Estados Unidos, sabemos, assim como o Brasil, foram construídos sobre um genocídio dos povos nativos. E esse genocídio, esse pavor e ódio contra os indígenas, começaram a ser incrustados nas leis locais.
[Natalia Viana]
Em 1677, o governo de Massachusetts ordenou que ninguém na colônia poderia comprar ou manter em sua casa nenhum indígena menor de 12 anos, porque eles, abre aspas, “causavam muitos problemas e medo nos moradores e podem ser perigosos”, fecha aspas.
[Natalia Viana]
É o que diz o texto daquele decreto estadual. Esse e outros documentos nós vamos deixar no site da Agência Pública para você mergulhar depois desse episódio.
[Natalia Viana]
No final dos anos 1600, o ódio era tanto que, de vez em quando, havia explosões de violência contra os indígenas. Por exemplo, no mesmo ano de 1677, na cidadezinha de Marblehead, a seis quilômetros de Salém, dois indígenas foram acusados de terem roubado um barco pesqueiro e a população resolveu puni-los com as próprias mãos.
[Natalia Viana]
Eis como uma testemunha descreveu a cena: “Toda a cidade correu até eles, começando primeiro a insultá-los, e logo depois as mulheres os cercaram. Com pedras, pedaços de pau e o que mais encontraram, elas acabaram com esses índios. Nós os encontramos sem a cabeça e com a carne como se tivesse sido arrancada dos ossos”.
[Natalia Viana]
Para os brancos de Salém, Tituba, embora fosse da América do Sul e não do Norte, era uma figura que se associava a esses inimigos reais, que eram, nas suas cabeças, aliados do demônio, espíritos malignos.
[Natalia Viana]
Talvez por isso, tenha sido ainda mais vívida e plausível a sua confissão aos ouvidos dos moradores de Salém. Uma coisa é certa. Ao confessar, mas também ao dizer que vira as marcas de outras bruxas no Livro do Diabo, Tituba ganhou tempo. Ela se tornou a única que tinha a chave para saber onde estavam aquelas bruxas. A única que tinha visto e falado com o diabo em pessoa.
[Natalia Viana]
Seu destino foi a prisão de Boston, onde ela passaria longos meses. Para lá, ela foi enviada junto com a Sarah Osbourne no dia 7 de março de 1692. Eu fui visitar o local onde ficava essa famosa prisão no movimentado distrito financeiro de Boston.
[Natalia Viana]
Eu estou aqui no centro de Boston. Hoje é dia 1º de novembro de 2023. Você está ouvindo aí o barulho dos carros. Eu estou aqui na Court Street, Rua do Tribunal. Antigamente se chamava Queen Street, Rua da Rainha, quando houve a independência se mudou rapidamente o nome. E antes disso se chamava Prison Street, Rua da Prisão. E é aqui que ficava a prisão onde as bruxas, as mulheres que foram acusadas de serem bruxas em Salém, mulheres e homens, foram presos durante mais de um ano.
[Natalia Viana]
E foi aqui, eu resolvi vir aqui porque foi para cá que a Tituba veio. E foi aqui que ela ficou presa durante mais de um ano. Numa prisão que, segundo as descrições históricas, era assim, próxima do inferno, né? Tem uma descrição que diz que era uma tumba em vida.
[Natalia Viana]
E foi nesse lugar, nesse lugar em condições terríveis, que a Tituba veio. Foi trazida para cá em março de 1692 e ficou até abril de 1693. Contar a história da Tituba e contar a história das bruxas, das mulheres que foram acusadas de serem bruxas, é também tentar encontrar resquícios dessas histórias, que são histórias que nunca foram retratadas com muito cuidado, principalmente pelos estados, né? Há muitas pesquisas históricas, mas os estados não costumam levar tanto a sério o que foi a violência contra essas mulheres. Então, buscar em qualquer lugar algum vestígio da história. E aqui, no centro de Boston, não tem nenhum.
[Natalia Viana]
O lugar onde era a prisão, você tem um Chipotle, que é uma rede de fast food mexicana, você tem um café Tate, você tem um prédio gigantesco, deve ter mais de 40 andares, aqueles espelhados que parecem um banco, né?
[Natalia Viana]
É nessa prisão, cujos vestígios desapareceram nas ruas de Boston, que vamos reencontrar outra personagem que conhecemos em episódios anteriores. Eu tô falando da Sarah Osbourne, aquela que recusou obstinadamente qualquer culpa diante dos juízes. Sarah Osbourne foi a primeira vítima da caça às bruxas de Salém.
[Natalia Viana]
Nascida Sarah Warren, ali mesmo, pertinho de Salém, na cidade de Watertown, ela era de uma família que tinha posses, e chegou até mesmo a se casar com um dos Putnams, aquela família rica da região. Teve dois filhos e uma filha. Só que o marido, Robert Prince, morreu ainda jovem. E aí aconteceu uma coisa que era muito comum na época. Ele deixou toda a terra para os filhos homens, que deveriam herdá-la quando fossem maiores de idade. A esposa ficaria sem nada.
[Natalia Viana]
Mas não parecia ser esse o plano da Sarah. E foi por isso que ela entrou em conflito direto com os dois patriarcas da família, John e Thomas Putnam, assinalados como executores do testamento. Agora, ela fez algo ainda pior aos olhos daquela comunidade.
[Natalia Viana]
Pouco depois de se tornar viúva, ela teve um caso com um servo contratado da família.
[Natalia Viana]
Vou fazer uma pausa aqui.
[Natalia Viana]
Estamos falando de um tipo de servidão por dívida muito comum na época. Naqueles tempos de início do capitalismo, muito antes das leis trabalhistas, as pessoas pobres podiam se vender à servidão. Ou seja, quem não tinha onde cair morto podia se oferecer a um amo em troca, por exemplo, do pagamento da passagem até a América. Ali, essa pessoa virava serva, escravizada, até que a dívida fosse paga. Assim, ingleses pobres, muitos deles brancos, chegavam como serviçais de casa ou para cuidar das plantações. Eram vistos com desdém pela sociedade e também eram submetidos, muitas vezes, a castigos físicos.
[Natalia Viana]
O rapaz que encantou a Sarah se chamava Alexander Osbourne. Era irlandês e, mesmo sendo bem mais jovem que ela, se tornaria seu segundo marido. Daí o sobrenome, como ela ficou conhecida na história. Sarah Osbourne. Para casar-se, ela antes perdoou a dívida dele e o livrou da servidão. Pecado mortal, segundo os costumes puritanos. Logo, começaram rumores de que eles haviam se mancomunado para matar o primeiro marido dela.
[Natalia Viana]
E aí, você se lembra do Malleus Maleficarum? Um dos maiores poderes das bruxas, segundo aquele livro, era justamente atacar, amaldiçoar e matar os homens. Mas Alexander, diferentemente do marido de Sarah Good, que atirou ela aos leões, manteve-se ao lado da Sarah Osbourne.
[Natalia Viana]
Por exemplo, durante a audiência e interrogatório, ele confirmou o depoimento dela perante os juízes. Isso não foi suficiente para absolvê-la. Sarah Osbourne foi levada para a temerária prisão de Boston, onde ficou, sem janelas, banheiro ou ar fresco, durante 83 dias.
[Natalia Viana]
Sua saúde já era frágil. Antes de ser presa, ela estava atada a uma cama por mais de um ano devido a uma doença que nós não sabemos qual é, mas que a tinha proibido de fazer muitas coisas, como ir à missa, levantando, como você pode imaginar, mais suspeitas nos mexeriqueiros vizinhos de Salém. Essa doença só piorou na cadeia. Ela faleceu no dia 29 de maio de 1692, aos 40 anos de idade.
[Natalia Viana]
Como lembrança dessa mulher que buscou a felicidade e foi condenada por isso, sobrou apenas uma pedra cinza com seu nome lapidado no centro da cidade de Salém. É ali onde fica o memorial construído para lembrar aqueles que morreram na caça às bruxas. Quase todos os dias, turistas colocam flores sobre essas lápides improvisadas.
[Natalia Viana]
Ou seja, acho que é a primeira vez que a cidade de Salém faz um memorial para homenagear as vítimas.
[Natalia Viana]
E o jeito que ele foi construído é uma praça, em volta dessa praça você tem um muro de pedra, um muro baixo, um muro que deve ter um metro e… um metro e trinta, de pedras, de pedras grandes, é, rememorando aquela época, e aí você tem pedras com o nome de cada uma das pessoas que morreram durante o processo e a data em que elas morreram também.
[Natalia Viana]
E aqui na entrada, você tem frases que foram faladas, né, durante o julgamento. Então, “I do plead not guilty”, “eu digo que não sou culpada”, “I am innocent, God knows I’m innocent”, “eu sou inocente, Deus sabe que eu sou inocente”. Então são frases retiradas dos documentos que sobreviveram.
[Natalia Viana]
Mas cada uma dessas pedras, você tem um nome, acho isso tão forte, você tem, por exemplo, né, Bridget Bishop, enforcada, 10 de junho de 1692; Sarah Good, enforcada, 19 de julho de 1692, Elizabeth Hall, enforcada, 19 de julho de 1692; Susana Martin, enforcada, 19 de julho de 1692; no caso da Susana tem uma velinha, tem uma vela falsa, né, aqui acesa pra ela, que é uma luzinha, na verdade, deve ter bateria isso aí, e nem o nome daqueles que morreram na prisão, como a Sarah Osbourne, né, e os outros.
[Natalia Viana]
Agora, vamos voltar a outra das primeiras acusadas, a Sarah Good. Você se lembra que a Sarah Good, sem ter ninguém que a defendesse, padecia grávida naquela cadeia, depois de ter sido chamada pelo próprio marido de inimiga de todo bem durante a audiência.
[Natalia Viana]
Sarah era pobre e mal educada, causava repulsa nos vizinhos, que a acusavam de murmurar maldições e nunca ir à igreja. Mas, assim como no caso da Sarah Osbourne, foi a sua condição de mulher que a levou a tornar-se uma bruxa aos olhos da comunidade.
[Natalia Viana]
Nascida em 1653 naquela mesma colônia inglesa, ela era filha de um proprietário de terras que também tinha uma taberna na cidade de Wenham, não muito longe de Salém. Mas, quando ela tinha 17 anos, seu pai cometeu suicídio. Sua propriedade de cerca de 28 hectares foi dividida entre os filhos homens e uma parte ficou com a viúva, mas ela se casou de novo e a terra foi para o novo marido. Ele, por sua vez, não deu nem um tostão para as sete filhas dela, elas que se virassem. E, naquela época, isso significava casar.
[Natalia Viana]
Foi então que Sarah se casou com o primeiro marido, Daniel Poole, que era também um servo por contrato. Ele morreu pouco depois, deixando para ela, que jamais recebera a herança que era devida do seu pai, uma enorme dívida em uma pequena terra.
[Natalia Viana]
O seu segundo marido, aquele que a acusaria mais tarde, também não conseguiu resolver a situação econômica e eles tiveram que vender a pouca terra que tinham e viver de esmola. Isso a gente já ouviu por aqui.
[Natalia Viana]
Quando ela subiu ao púlpito diante dos juízes e ouviu o esposo dizer que ela ou era bruxa ou viraria uma, a Sarah estava com uma gravidez avançada que já se percebia sob a roupa. Mas nenhuma das testemunhas ou dos escribas fazem nenhuma menção a essa condição como algo que a fizesse ser digna de pena. Seu depoimento tampouco sensibilizou alguém naquele dia e talvez a sua postura tenha deixado todo mundo ainda mais seguro de que ela era do mal.
[Natalia Viana]
Eis o que escreveu o professor e escritor Ezekiel Cheever, um dos escribas do depoimento: “Ela não queria mencionar a palavra ‘Deus’. As suas respostas eram faladas de uma maneira muito maligna e rancorosa, respondendo e retrucando contra as autoridades, com palavras vis, ofensivas e muitas mentiras”.
[Natalia Viana]
Um escriba oficial, veja o quão isento ele era. Pior, nos papéis depois usados para sua acusação, há registros de que sua própria filha, Dorothy, de seis anos, teria sido forçada a testemunhar contra a mãe, dizendo que ela, abre aspas, “tinha três pássaros, um preto, um amarelo, e que esses pássaros machucavam as crianças e demais afligidos”, fecha aspas.
[Natalia Viana]
Mas a Sarah ficaria sozinha na cadeia por pouco tempo em uma das chocantes reviravoltas que ocorreram naqueles dias. Pouco depois das cenas temerárias que testemunhou no Centro Comunitário, Annie Putnam Jr., filha daquela família extremamente religiosa e que se tornou a quarta menina a ser afligida pelos surtos, passou a ter visões da pequena Dorothy, ou do espectro dela.
[Natalia Viana]
Em 3 de março, Annie diz ter sido atormentada novamente por novas bruxas. Uma delas, ela não conseguia ver direito, mas a outra era a pequena Dorothy Good. O espectro da criança estaria apontando o Livro do Diabo para ela, exigindo que o assinasse.
[Natalia Viana]
Além da Annie Putnam Jr., uma nova afligida, Mary Walcott, também acusou a pequena Dorothy algumas semanas depois. Eu vou ler aqui um trecho do seu depoimento: “Cerca de 21 de março eu vi a aparição de Dorothy Good, filha de Sarah Good veio me morder e me beliscar e continuou me afligindo várias vezes até dia 24 de março, dia da sua inquirição. E então ela me atormentou e afligiu muito gravemente durante o tempo do seu depoimento, e também muitas vezes desde a detenção de Dorothy Good me afligiu me mordendo, beliscando e quase me sufocando, me mandando escrever no seu livro”.
[Natalia Viana]
Como mostra o registro, a pobre criança foi também levada para o Centro Comunitário semanas depois, no dia 24 de março, encarou o grupo de acusadoras que repetiam o conhecido expediente, retorcendo-se em dor, acusando-a de mordê-las e espetá-las em espírito.
[Natalia Viana]
Ainda durante o depoimento, uma delas chegou até a mostrar marcas no braço de uma mordida de dentes pequenos para provar que era o espectro da Dorothy. Isso, para os juízes ali presentes, era uma prova da materialidade dos crimes espectrais.
[Natalia Viana]
Dorothy, às vezes chamada de Dorcas nos documentos oficiais, foi enviada para a prisão de Boston ao lado da sua mãe Sarah Good e outras mulheres. A Sarah ficou, portanto, na prisão que era conhecida como um túmulo para os vivos, com sua pequena filha e sua gravidez cada vez mais avançada para cuidar.
[Natalia Viana]
Eu sei que dá raiva de ouvir essa história, mas o que fazia aquela comunidade, junto da mais alta esfera legal, os magistrados vindos de Boston, prenderem uma criança de 6 anos, não era uma maldade intrínseca, uma vontade de torturar mulheres. Era pânico. E esse pânico se manifestava cada vez mais vivamente nas conversas das pessoas, no seu cotidiano, e nas visões das afligidas, que se tornaram mais elaboradas e mais fantasiosas. Por exemplo, logo depois dos primeiros depoimentos, no dia 1 de março, saindo do Centro Comunitário, muita gente chegou a ver uma aparição assustadora. De novo, tudo isso está registrado nos documentos do processo da época.
[Natalia Viana]
Um grupo de homens havia se reunido na casa do Dr. William Griggs, aquele médico que diagnosticou que o caso era uma maldição e não uma doença de corpo. Você se lembra que a terceira garota afligida era sua sobrinha? Pois naquela noite, a sobrinha Elizabeth Hubbard começou a sofrer os ditos ataques ali no meio da sala, diante de todos eles. Sentado na mesa, tava um dos vizinhos que chamava Samuel Sibley, e ele tentou ajudar a menina.
[Elizabeth Hubbard]
Tem um espectro me beliscando, me perfurando com uma faca!
[Samuel Sibley]
Elizabeth, Elizabeth, por favor, por favor, querida, o que você está vendo? Nós podemos te ajudar, fala!
[Elizabeth Hubbard]
Ali, ali em cima da mesa, onde está Samuel Sibley? Ali está Sarah Good.
[Samuel Sibley]
Onde?
[Elizabeth Hubbard]
Está sentada e completamente nua. Sua vagabunda! Nojenta! Se eu tivesse algo, eu te mataria!
[Samuel Sibley]
Eu vou pegar ela. Me dê minha bengala!
[Elizabeth Hubbard]
Isso! Você atingiu bem no meio das costas, você conseguiu!
[Natalia Viana]
Sarah Good tinha sido levada para longe das demais acusadas, para um celeiro em Ipswitch, na casa de um dos guardas. Ela ainda não tinha sido enviada para a prisão de Boston, pois quase ao mesmo tempo em que seu espectro aparecia em cima da mesa, quando o guarda foi fazer uma ronda para ver como é que ela tava, ele levou um enorme susto, pois ele não a encontrou. Ela não tava lá e nem poderia ter fugido. Então ele achou melhor esperar a luz do sol para buscar a fugitiva. Só que, pela manhã, ela tava lá. Podia ter sido um engano, se não fosse por um detalhe. O guarda viu que havia sangue no seu braço, como se ela tivesse recebido um golpe. Exatamente como o que recebera de forma espectral da bengala de Samuel Sibley.
[Natalia Viana]
Em outro lado da cidade, ainda naquela mesma noite, quando caminhavam de volta para casa, dois moradores ouviram um barulho na estrada.
[Natalia Viana]
Era um som que se repetia. Um ruído novo, diferente dos sons da floresta aos quais já tavam acostumados. Logo, eles viram uma silhueta escura se formando. Então, essa forma escura se lançou para cima. E lá no alto do céu, explodiu e transformou-se na forma de três mulheres.
[Natalia Viana]
Isso mesmo, você adivinhou. Eram Sarah Good, Sarah Osbourne e Tituba.
[Natalia Viana]
Uma semana depois, Annie Putnam Jr. conseguiu, como num passe de mágica, recordar… de quem era aquela silhueta, aquela forma sem rosto que ela vira ao lado da pequena Dorothy Good. Por que ela demorou tanto para pôr o nome a uma assombração, ninguém sabe. Nem é algo que foi questionado pelos juízes. Mas era outro nome novo. E dessa vez, uma pessoa com um perfil diferente das primeiras acusadas: Elizabeth Proctor. Sim, ela fazia parte da família Proctor, a mais rica da região.
[Natalia Viana]
Elizabeth estava inserida na sociedade, frequentava a igreja. Junto com o marido, John Proctor, ela era dona de uma taverna bem movimentada que ficava ao norte do vilarejo. Tinha cinco filhos e estava grávida do sexto bebê. E além disso, o casal tinha terras, muitas terras. Havia pouco, quase nada, que pudesse manchar a reputação da Elizabeth Proctor. Mas o que mais levantava suspeitas, talvez a melhor palavra seja pavor, entre os moradores de SalÉm, era uma decisão comercial. a Elizabeth e o John decidiram atender na sua taverna, em indígenas que moravam ali na redondeza. Ali, esses homens e mulheres, vistos como uma enorme ameaça, podiam se deliciar da bebida servida e sentar-se, lado a lado, com os ingleses puritanos.
[Natalia Viana]
A decisão de atender indígenas pode ter sido de cunho comercial ou talvez até político. Os Proctor eram conhecidos por serem mais abertos e progressistas que seus vizinhos. Mas foi essa decisão que selou o destino de Elizabeth. Acusada pela menina Annie Putnam Jr., em poucos dias, ela já estava encarcerada na soturna prisão de Salém, aguardando a sua vez de ser confrontada pelos juízes e julgada pelos olhares acusadores dos seus vizinhos e clientes.
[Natalia Viana]
Essa acusação em particular permite vislumbrar com clareza o lugar dúbio mais central que a relação com os nativos da América do Norte ocupava no imaginário dos moradores de Salém no século XVII. Por um lado, apenas se relacionar com eles era motivo de desconfiança, de olhares acusatórios. Por outro, sua pretensa ligação direta com o demônio, esse poder sobrenatural, e os relatos e memórias das atrocidades cometidas por e contra eles transformavam os nativos em seres com conhecimentos poderosos na visão dos puritanos.
[John Hathorne]
Você viu o diabo?
[Tituba]
O diabo veio até mim e me pediu para servi-lo.
[John Hathorne]
Quem mais você viu?
[Tituba]
Quatro mulheres. E elas às vezes machucam as crianças.
[John Hathorne]
Quem são elas?
[Tituba]
Sarah Good e Sarah Osbourne. E não sei quem são as outras. A Sarah Good e a Sarah Osbourne me fizeram machucar as crianças, mas eu não vi as outras. Havia também um homem alto, de Boston.
[John Hathorne]
Quando você os viu?
[Tituba]
Ontem à noite, em Boston. E havia uma mulher? Com um capuz negro sob outro capuz branco de seda e um nó na ponta. Eu não sei que mulher era aquela, mas eu a vi em Boston quando eu morava lá.
[Natalia Viana]
Esses trechos que você tá ouvindo são, de novo, a impressionante confissão da Tituba. Lembre-se dessa descrição: uma mulher com um capuz branco de seda e um homem alto vindo de Boston. A Tituba chegou a descrevê-lo como usando uma cartola. E foi talvez a percepção de que os indígenas possuíam conhecimentos sobrenaturais que levou a caça às bruxas para um patamar novo, jamais experimentado nas colônias inglesas da América do Norte. A operadora dessa mudança foi Tituba.
[Natalia Viana]
Eu estou me referindo a uma interessante análise. Uma análise feita pela historiadora Elaine Breslaw, autora do livro sobre Tituba, que eu mencionei no começo desse episódio. Eu vou ler um trecho: “As leis Suntuárias em Massachussets proibiam que homens e mulheres comuns se vestissem em roupas feitas de materiais finos. A ordem de 14 de outubro de 1651, emitida pela Corte Geral de Massachussets, proibia pessoas de ‘condição humilde’ de usar ‘roupas da nobreza’. Mulheres não podiam usar ‘capuzes ou xales de seda ou tafetá’. A ordem dizia que esse uso era apenas ‘permitido a pessoas de maiores fortunas, ou mais educados’ e que ‘não podemos senão julgar isso intolerável em pessoas de tais poucas condições'”.’
[Natalia Viana]
Portanto, segundo a Elaine Breslaw, a descrição que a Tituba fez de uma mulher com roupa de seda e um homem vestido de negro e vindo de Boston era uma referência velada a pessoas de alto status social. Era uma tentativa de identificar a maldição, com as classes mais altas.
[Natalia Viana]
Aqui mais um trecho do livro: “A mensagem extraordinária de Tituba aos seus examinadores era que eles buscassem seres diabólicos no meio da elite. A mensagem, entregue como um ataque discreto sobre o sistema de classes, abriu as portas às acusações de mulheres respeitáveis”.
[Natalia Viana]
Foram as palavras escolhidas por Tituba que deixaram claro que as bruxas também podiam ser pessoas nobres. E assim seria. Nem a hierarquia social poderia proteger homens e mulheres do que tava por vir. Mas se por um lado a declaração de Tituba permitiu abrir as portas para a perseguição a mulheres de maior status social, por outro, criou-se um novo fenômeno que se espalhou para além da Vila de Salém.
[Natalia Viana]
Nos dias e semanas que se seguiram, outras pessoas passaram a ter visões. Gente até adulta, como a mãe de Annie Putnam Jr., Annie Putnam, e até mesmo John Indian, o marido de Tituba. Mas ainda eram as meninas, aquele quarteto formado por Betty Parris, Abigail Williams, Annie Putnam Jr. e Elisabeth Hubbard, que se tornaram as principais acusadoras em todo o processo judicial que se seguiria.
[Natalia Viana]
Mais do que isso, com o passar dos dias, embora sofressem terrivelmente com as crises, elas passaram a ser consultadas por outros moradores de comunidades vizinhas que se deparavam com alguma doença sem explicação ou uma mortandade repentina das criações. Elas, então, eram chamadas, transportadas em uma carroça para visitar, tocar os enfermos e ter visões sobre quem eram os espectros malignos que os atacavam. Das suas bocas saíam acusações certeiras, cabais, que precisavam de pouco mais do que sua voz para se tornarem evidência e levar muita gente à prisão.
[Natalia Viana]
Homens e mulheres começaram a apinhar a cadeia de Salém, que logo ficou lotada. Os demais eram levados para o túmulo em vida, a prisão de Boston. Graças a esse círculo de adolescentes, a quantidade de presos chegou a números impressionantes. Mais de 150 pessoas foram encarceradas durante a caça às bruxas.
[Natalia Viana]
Vamos lembrar que a vila de Salém, onde tudo começou, tinha naquela época cerca de 500 moradores. E a cidade de Salém tinha cerca de 2 mil. Não posso deixar de imaginar que essas meninas experimentaram, talvez pela primeira e única vez em toda a sua vida, uma sensação de poder numa sociedade onde o seu lugar já era predeterminado ao nascer. Pertencem a outra pessoa, seu pai, apenas trocar de dono ao casar, procriar, cuidar dos filhos, ir à igreja. Uma espécie de servidão sem contrato e a qual não se podia renunciar.
[Natalia Viana]
Durante os meses de encarceramento, muitas dessas mulheres acusadas encontraram um tormento ainda pior do que serem taxadas de bruxas. Além das condições inóspitas, sem banheiro, sem ventilação, cercadas de paredes de pedra, os gastos da cadeia tinham que ser pagos por elas mesmas. Ou seja, quem devia pagar pela comida, cobertor, colchão, eram as acusadas. Ou então, a sua dívida ia se acumulando.
[Natalia Viana]
A Sarah Good, que não tinha nada, foi acumulando dívidas. A barriga crescia, o parto se anunciava pra dali alguns meses, e desse fato ela recebeu o único pingo de clemência que teve dos seus julgadores. Condenada, ela não foi uma das primeiras a pagar a pena, porque, primeiro, ela tinha que cumprir a única função social que ainda era respeitada, dar à luz.
[Natalia Viana]
Sarah Good deu à luz na prisão entre maio e junho de 1692. Só posso imaginar as condições deprimentes, e como se organizou um parto improvisado, com certeza ajudada pelas demais mulheres presas. Imagino também que a criança tenha nascido fraca, devido à má alimentação entregue àquelas que simbolizavam todo o mal. O bebê morreu poucos dias depois. E não quero nem tentar descrever o que essa morte deve ter doído a Sarah. Como a morte de um bebê, pela maldade dos homens, pode destroçar uma mãe. Mas foi ainda pior. A morte do seu bebê era também a sua sentença de morte. Seu tempo havia acabado.
[Natalia Viana]
Em 9 de julho, a Sarah foi colocada sobre uma carroça pelo xerife de Salém, George Corwin, junto com outras quatro condenadas. O grupo foi seguido a pé por uma espécie de cortejo formado por pessoas da vila, incluindo as meninas acusadoras, que deviam, eu imagino, gritar para elas que iam sobre a carroça, acusando-as de serem o suco de tudo que há de mal na terra.
[Natalia Viana]
Em uma pequena clareira aberta às margens da cidade de Salém, os homens da lei haviam construído uma plataforma de madeira.
[Natalia Viana]
George Corwin conduziu-as uma a uma e, quando chegou a vez da Sarah, levou-a para subir a plataforma, amarrou suas mãos atrás das costas, atando a saia nas pernas para evitar que ela pudesse chutar quando o ar fosse lhe faltar. Então ele passou a corda sobre a sua cabeça, ajeitando-a ao redor do pescoço. A plateia assistia hipnotizada.
[Natalia Viana]
Antes de ser levada à plataforma, a Sarah teve mais uma chance de confessar e se arrepender dos seus crimes perante Deus e perante a lei dos homens. O ministro puritano da cidade de Salém, Nicholas Noys, que acompanhava o julgamento, aproximou-se dela e pediu que confessasse.
[Nicholas Noys]
Você sabe que vai morrer. Limpe sua consciência.
[Natalia Viana]
A Sarah se negou mais uma vez a abaixar a cabeça.
[Sarah Good]
Não sou mais bruxa que você. E se você me matar, Deus vai te dar sangue para beber.
[Natalia Viana]
Essas foram as últimas palavras registradas de Sarah Good e foram também os seus últimos suspiros.
[Natalia Viana]
O xerife George Corwin deve ter feito uma prece antes de liquidar com as condenadas, ou seja, de cumprir o papel que o Estado lhe exigia, cometer um feminicídio.
[Natalia Viana]
Tendo certeza que Good tava bem amarrada, tanto as mãos quanto as pernas, ele a carregou até a beira da plataforma de madeira e dali a atirou na direção da multidão, onde o corpo pendeu sob o peso da corda, deixando-a sem chão sob os pés.
[Natalia Viana]
Hoje ficamos por aqui, mas na próxima semana vamos entender o que aconteceu a seguir na nossa história de terror real. Se você tá gostando do podcast, não esquece que você pode consultar todos os documentos no nosso site e você também pode apoiar o nosso trabalho para que a gente possa fazer mais podcasts, com apenas 20 reais mensais. Vai lá: apoie.apublica.org
[Natalia Viana]
E pra você que ficou comigo até aqui, eu vou compartilhar uma história que deixei de fora desse episódio, porque ao longo dos séculos ela gerou muita especulação. E aqui, como você sabe, a gente está focado nos fatos reais.
[Natalia Viana]
Você se lembra que o pastor Nicholas Noys pediu pra Sarah Good se arrepender e ela respondeu dizendo que se ela morresse, Deus ia dar sangue pra ele beber? Pois bem. O reverendo Noys morreu de uma hemorragia cerebral em 1718, aos 70 anos. E diz a lenda que ele morreu tossindo sangue, assim como a Sarah Good havia previsto.
[Natalia Viana]
Caça às Bruxas é uma produção original da Agência Pública de Jornalismo Investigativo. Esse podcast foi dirigido por mim, Natalia Viana. Eu fiz a pesquisa histórica e a reportagem em colaboração com a Giulia Afiune, que também captou os áudios em Salém. Eu também escrevi os roteiros dos episódios com a colaboração da Sofia Amaral.
[Natalia Viana]
A Sofia Amaral também coordenou a produção da série, com apoio da Stela Diogo e da Rafaela de Oliveira. Tanto a narração quanto as cenas de dramaturgia foram gravadas no estúdio da Agência Pública, com trabalhos técnicos de Stela Diogo e Ricardo Terto. A Mika Lins fez a direção de narração e de dramaturgia. O desenho de som foi feito por Ricardo Terto, que também fez a edição e finalização dos episódios. A trilha sonora original é de Paulo Sartori, com trilhas adicionais de Epidemic Sound. A identidade visual é do Matheus Pigozzi.
[Natalia Viana]
Nesse episódio, tivemos em ordem de aparição: Marcelo Marothy como o Juiz John Hathorne; Mika Lins como Tituba; Diego Machado como Nicholas Noys; Dora Calabria como Elizabeth Hubbard; Rodrigo Scarpelli como Samuel Sibley; e Agnes Zuliani como Sarah Good.
[Natalia Viana]
Registro aqui os nossos agradecimentos à Lucretia Slaughter, à Witch City Walking Tours, que liberou o tour com o Sean em Salém para a gente usar nesse podcast, ao Peabody Essex Museum e à Phillips Library, além do Noah Friedman-rudovsky, meu grande amigo que sempre me acolhe quando eu vou para os Estados Unidos, e aos aliados. Graças a vocês, esse podcast e outros podem acontecer.
[Natalia Viana]
Homenageamos também todas as mulheres que morreram como bruxas, e as suas filhas, netas e descendentes. A sua memória não será esquecida.







